
Um pequeno "grande" texto utópico, que cada vez mais parece advinhar um futuro não assim tão longinquo... Sad but true :(
Da vida dos nicomaníacos (até ao século 22)
(...)No princípio do ido século 21, o anti-tabagismo triunfou. As primeiras medidas proibiram o consumo em locais públicos. Primeiro, escolas ou hospitais. Depois, cafés, restaurantes, hotéis. E «ruas livres» (de cigarros), devidamente videovigiadas. As multas eram elevadas. Mais tarde, insustentáveis. Daí em diante, fumar, só em casa. Posteriormente, nem isso. Banalizou-se a proibição de fumar nos contratos de arrendamento. Baniu-se o fumo na presença de menores. Por fim, proibiu-se o tabagismo em toda a casa que não distasse mais de 500 metros de outros domicílios. Por volta de 2020, tornou-se impossível encontrar um canto onde o tabaco fosse permitido.
Vincou-se a condenação social dos fumadores. Encarados não apenas como dependentes, mas enquanto ameaça, molestadores por puro hedonismo. Perigosos alienados mentais.
A investigação científica disparou. Apontavam-se famílias «intoxicantes» (metafórica ou literalmente). E aberrações genéticas. Multiplicaram-se centros de recuperação, onde se desabituavam fumadores, internados e compelidos a revelar toda a sua vida. A história da infância e família, o percurso escolar e profissional, os amores. Os técnicos inteiravam-se dos seus sentimentos íntimos ou reprimidos, falhas e invejas dissimuladas, todos os segredos, a verdadeira vontade (logo aplacada). Como os técnicos sabiam mais acerca do fumador do que o próprio ? eram peritos! ? este deveria confiar. Os técnicos, aliás, nada sentiam e tudo registavam (...)
A terapêutica incluía uma forte componente grupal, para curar as óbvias tendências anti-sociais. As prescrições químicas ? tais como bloqueadores dos neurotransmissores (...) e, em casos perdidos, pastilhas nicóticas ? tornaram-se indispensáveis, desde que antecedidas do cerceamento da liberdade. Embora esta indústria anti-tabágica florescesse, a maioria dos tratamentos revelava-se infrutífero.
Os preços agravaram-se exponencialmente. Não tardaram a surgir os designados nicomaníacos, cuja vida girava em torno de financiar o consumo. E as acusações do eleitorado, aos governos que desperdiçavam com indivíduos incorrigíveis e perigosos, advieram intoleráveis. Cessaram os subsídios estatais. Terapêutica só no privado. Só para delinquentes ricos. Os hospitais públicos recusavam a assistência às doenças devidas à inalação voluntária de fumo (IVF). Os cancerosos nicomaníacos, se não podiam pagar o tratamento no privado, estavam entregues à sua sorte.
Assim, considerando o risco para a saúde pública e para a ordem social, criaram-se nicodatórios, prisões onde se encarceravam os fumadores cadastrados.
Constava que algumas caras conhecidas persistiam no abominável vício. Os fumadores famosos apanhados, logo eram desancados na praça pública (...) Os media estavam proibidos de exibir imagens relativas ao tabaco, mas as audiências geradas compensavam as gordas multas. As teorias conspirativas relatavam nicorgias, encontros obscuros, nos quais os poderosos traficavam cigarros. Nunca se provou a existência destes covis, se bem que impregnem os mitos urbanos de então.
Alguns fumadores activistas tentaram estabelecer comunidades autónomas, no vasto território livre fora das cidades, cuja principal fonte de rendimento consistia na plantação de tabaco. Porém, os governos depressa criaram as UECON ? unidades especiais de combate às nicomunidades ? que as exterminaram, interditando a nicultura de sobrevivência. Somente as multinacionais podiam cultivar gigantescas plantações, de avultados lucros, mesmo descontando os impostos. Afinal, era necessário que alguém pagasse o dispendioso combate à nicomania. Nada como cobrar aos responsáveis.
Sujeitos a multas e preços exorbitantes, vistos como criminosos, privados de assistência, impedidos de habitar a cidade ou o desterro, os fumadores passaram a sobreviver em subterrâneos, esgotos desactivados, colónias pobres e violentas. A população confirmava, assim, as suas piores suspeitas: os nicomaníacos eram uma corja imunda e facínora. Uma estirpe a extirpar (...).
in "Sexta" por Joana Amaral Dias